quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Rejane Sales

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

E o Vento Levou...

Para quem gosta de filme de romance da década de 40 vale a pena assistir novamente
ou assistir pela primeira vez quem nunca o viu.
Romance que tem como pano de fundo a guerra civil e o  feminismo

quinta-feira, 15 de julho de 2010

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Metáforas da Cultura: Diferença e identidade na leitura da vida social

As utopias consolam: é que se elas não têm lugar real, desabrocham, contudo, num espaço maravilhoso e liso; abrem cidades com vastas avenidas, jardins bem plantados, regiões fáceis, ainda que o acesso a elas seja quimérico.
Michel Foucault. 2002, p. XIII.
 



Ler a vida social só é possível quando a olhamos sem enclausurá-la ou limitá-la ao que pensamos, como ressalta Oswald de Andrade: “livre de todas as catequeses”, aberta sem adesão a nenhuma fórmula de expressão do mundo, mas apenas sempre em experimentação para “ver com olhos livres”. (ANDRADE, 1970, p. 6;9).
A leitura é uma descoberta de novos jardins nos textos alheios, uma desterritorialização do que foi escrito para que hajam outras invenções. A leitura não tem lugar e nada estoca, trata-se sempre de uma arte de fugas, que nos “exilam de certezas”, como afirma Michel de Certeau. (1994, p. 269). A autonomia do leitor depende da transformação de suas relações sociais que condicionam, por assim dizer, sua atividade diante dos textos. Movidos por leituras e pensamentos não deixamos de ser como estrangeiros, pois aproveitamos o que as idéias nos aprazem, mas nada podemos conter em nossas mãos. Nada guardamos, antes usufruímos e partilhamos construções do olhar. Como nos inspira Guimarães Rosa: “A vida é também para ser lida. Não literalmente, mas em seu supra-senso. E a gente, por enquanto, só a lê por tortas linhas”. (ROSA, 2001, p. 30).
O Intelectual como um Estrangeiro
Em nossas aventuras pelo conhecimento, entramos em terras estranhas, em outros universos, e podemos ser vistos como estrangeiros. (SIMMEL, 1983). Como andarilhos trocamos, simbolicamente, bens concretos e simbólicos, sentimentos e linguagem, assim como o estrangeiro que não é “proprietário de terras”, tanto do ponto de vista físico quanto metafórico. Aceitarmo-nos como estrangeiros é de certa maneira admitir que as denominações do que seja bem ou mal, identidade ou diferença, sedentarismos ou nomadismos numa cultura e numa sociedade, não podem ser tomados como dados, mas antes como pontos de partida para desconstruções e construções de outras leituras. Assumimos como ofício suspender relações para contemplá-las não como nativos ou cativos de suas lógicas, mas como críticos do que elas constituem.
O lugar da ciência não é o do “conforto na desventura”, antes investigar e estabelecer relações entre os fatos. Tão pouco ela nos proporciona consolo, é antes um trabalho lento, constante, hesitante para compreender o que lhe é exigido, ainda que nem sempre as peças se completem. O intelectual não deixa de ser um andarilho e em si um exilado de seu próprio contexto e do conforto de se abrigar num conjunto de idéias que o confortem. Do latim exiliu, exílio significa “expatriação forçada, degredo, desterro; lugar onde reside o exilado, lugar afastado, solitário ou desagradável de habitar”. (FERREIRA, 1998). Ou ainda, “lugar triste, solitário, sem alegrias”. (LAROUSE CULTURAL, 1992). Essa metáfora nos revela as limitações aos desejos e aos encarceramentos cotidianos. No entanto, influenciando-nos por Edward Said, tomamos como metáfora acionadora dos movimentos do trabalho intelectual com conceitos e com escolhas teóricas. Uma trilha na qual o intelectual “encontra-se sempre entre a solidão e o alinhamento”.
A condição do exilado não deixa de ser uma metáfora para exemplificar o percurso do intelectual, nunca adaptado plenamente, um ser inquieto e a provocar inquietações. Ao contrário da maioria das pessoas, o exilado, como o intelectual, têm uma “consciência de dimensões simultâneas” (SAID, 2003, p. 59) sobre o que seja uma cultura, um cenário e um país. Nunca vendo as coisas de maneira isolada, e nem “vendo as coisas não apenas como elas são, mas antes como se tornaram o que são”, o que significa perceber os valores, as crenças e as relações como “contingentes e não como inevitáveis”, percebê-las como escolhas e não a elas se converter. Escolhas dos indivíduos e da sociedade e não “naturais ou ditadas por Deus e, por conseqüência, imutáveis, permanentes, irreversíveis”.
O intelectual é, de certa maneira, como um estrangeiro a explorar outros itinerários, atraído pelo provisório e pelo arriscado, não pelo habitual, pela inovação e não pelo que já está estabelecido, e se no mundo real, precisamos ser nós mesmos, “dentro da academia precisamos ser capazes de descobrir e viajar entre outros eus, outras identidades, outras variedades da aventura humana” (SAID, 2003, p. 207).
Rastros da Socialidade entre Identidades e Diferenças

Através dos conceitos é que no campo das ciências sociais tentamos delinear nossas leituras sobre a vida social. Mas até que ponto esses conceitos falam mais do que podem dizer? Quantas vezes não aparecem como se pudessem sustentar realidades inteiras sob suas sombras? Até que ponto nós esticamos os conceitos para ocultar o que não conseguimos enfrentar como estranho ou desconhecido? Tais questionamentos parecem ser pertinentes ao pensarmos na utilização dos termos “identidade e diferença”, discussão sobre a qual nos debruçamos. Não seria pertinente pensar nos exílios que cercam a postura do pesquisador e rondam suas leituras? Que princípios norteiam nossas escolhas teóricas e metodológicas? Escolhemos conceitos pelo o que eles nos inspiram ou para que sejam nossas âncoras diante da fluidez da vida social?
Essas são questões que nos norteiam, e certamente serão sempre um ponto de partida ao nos aventurarmos no campo da compreensão social em seja qual for a trilha. Nossa relação de análise diante do que se constrói na realidade sócio-cultural, perante as classificações e representações nelas existentes, deve ser antes de tudo crítica, devido ao fato de que toda ordem parece, do ponto de vista do pensamento, como “necessária e natural”, mas é sempre “arbitrária em relação às coisas” (FOUCAULT, 2002, p. 74). Ou melhor, “a história da ordem das coisas seria a história do Mesmo – daquilo que, para uma cultura, é ao mesmo tempo disperso e aparentado, a ser, portanto distinguido por marcas e recolhido em identidades”. (FOUCAULT, 2002, p. XXII).
Os discursos não só refletem realidades, também as produzem. A realidade exige mais de nós do que o que podemos dar com nossas noções e conceitos, apenas podemos apresentar na escrita os embates do vivido. Como indica Deleuze, a teoria “não se totaliza; (...) se multiplica e multiplica”, pois elas são sempre “locais, regionais, descontínuas”. (In: FOUCAULT, 1998, p. 2;5). Somente um pensamento e uma escrita que encarne a alteridade atinge nas palavras o deslocamento que ela proporciona.
O mundo que muitas vezes descrevemos como estando em “crise”, vivendo uma perda de identidade diante das transformações de um mundo cada vez mais global, não será um mundo, sobretudo criado, pelas fantasias teóricas de unidade, racionalismos e continuidades? Não será que muitas das pretensões de que vivíamos num território sólido e abrigado por relações sociais estruturadas não foram, sobretudo, invenções teóricas? Não poderíamos pensar que no território das definições do que seja identidade e diferença humanas precisamos concebê-los antes de tudo como apropriações textuais, de um universo acadêmico, sobre o que oscila de maneira múltipla e variável na vida social? Nossas leituras não são de certa maneira constituídas numa escritura de esquecimento de que nossas tintas não são as únicas, nem definitivas e de que não há solidez na configuração das palavras? Se vemos tantos “ismos” como invenções do Ocidente, o Outro como invenção de um pretenso e imutável “Eu”, não poderíamos pensar se o que nesse momento entendemos como diferença não é ainda uma invenção da identidade? Será que mesmo quando falamos do diferente ainda não estamos com os pés numa trilha de busca por garantias e por uma suposta fixidez identitária?
As fronteiras iniciais entre os seres humanos está na linguagem, nela é que a alteridade se constitui. Assim os lugares do “eu” e do “outro” não são pontos fixos, mas colagens da linguagem que se encarnam nos corpos, nas palavras e na movimentação de sentidos, como nas leituras que são feitas sobre as relações sociais. Portanto, não há como separar experiência da relação social da linguagem. Perscrutá-la é uma trilha para lidar com as categorias de análise como “contextuais, contestáveis e contingentes”, (SCOTT, 1999, p. 46) como as ações sociais também o são.
A realidade social se dá como uma ficção dentre as múltiplas opções possíveis. Através delas se constrói genealogicamente narrativas que garantam na cultura explicações de uma origem e uma fixidez. Mas, não há como construir identidades que não sejam de antemão fraturadas, pois é da condição humana uma falta estruturante que a cultura e a sociedade tentam preencher. Narrativas de pertencimento, de origem, são uma maneira de permitir solidez para vidas que carregam os traços do efêmero. Cada cultura constrói seus subterfúgios para escapar da finitude e do descontínuo. Cada contexto social cria suas classificações entre os seres e as coisas. Na leitura de Durkheim (1990), os laços sociais demarcam os lugares que cada coisa ocupa e os que os integram. Sendo assim, os limites impostos pelas classificações nos mapeam, adornando-nos de identidades e/ou diferenças, dependendo de nossos lugares sociais. Presenças que se incluem, exclusões latentes do que não pode ser apreendido, classificado na moldura das representações.
Pensar identidades e diferenças é considerá-las como uma maneira de ler e de ver as relações sociais, sempre como relativas, brotando como respostas a contextos e situações específicos, florescendo sobre mitologias e místicas. Raça, gênero, diferenças religiosas, de posições sociais atuam como “metáforas da cultura”, ao que ela, pelas próprias mãos humanas, define como índice de lei. Essas, como cartografias da vida social, são construções. Porém, como tudo o que pertence à cultura, cristalizam-se em representações que as delineiam, muitas vezes, como naturais, divinas e inquestionáveis.
A cultura opera a partir da legitimação de crenças e na propagação de segmentações, na legitimação de valores e nas repetições ritualísticas do que lhe define sentido. Contudo, para pensá-la não temos como pertencer ao domínio de seu discurso, antes suspendê-lo, indagá-lo. Nossas indagações de alguma maneira precisam seguir os rastros do que nos instiga Michel Foucault: “A partir de qual a priori histórico foi possível definir o grande tabuleiro das identidades distintas que se estabelece sobre o fundo confuso, indefinido, sem fisionomia e como que indiferente, das diferenças?” (FOUCAULT, 2002, p. XXI).
Uma busca por unidade, coesão e continuidade, algo que a própria vida não tem, só pode aparecer como uma ficção humana para construir garantias e perenidades. A confiança naturalizada nas construções sociais, esse é um dos elementos que dá legitimidade à cultura, mas talvez estejamos vivendo num tempo em que as mudanças têm atingindo as formas e os lugares sociais. Desse modo, o pertencimento a quaisquer valores, estar atado a pretensos laços de segurança na vida social, já nada garantem, são apenas projeções humanas tão frágeis como sua própria existência.
Nas palavras de Edward Said, “ao longo história, cada sociedade teve o seu Outro: os bárbaros para os gregos, os persas para os árabes, os mulçumanos para os hindus, e assim por diante”. (SAID, 2003, p.199.) Simone de Beauvoir continua: “Para os habitantes de uma aldeia, todas as pessoas que não pertencem ao mesmo lugarejo são “os outros” e suspeitos; para os habitantes de um país, os habitantes de outro país são considerados “estrangeiros”. Os judeus são os “outros” para os anti-semitas, os negros para os racistas norte-americanos, os indígenas para os colonos, os proletários para as classes dos proprietários”. (BEAUVOIR, 1980, p. 11). Dessa forma, poderíamos pensar nas diversas estratificações sociais de classe, etnia, idade, gênero como relações de poder, móveis e desiguais na configuração desse outro.
A necessidade de um “outro” para garantir a construção de um “eu” individual ou coletivo, definido e coerente, demonstra-nos que precisamos estar atentos em como a identidades se configuram na marcação de diferenças, em “locais históricos e institucionais específicos, no interior de formações e práticas discursivas específicas, que por estratégias e iniciativas específicas”, por surgirem de maneiras múltiplas só podem ser entendidas no plural. Como observa ainda Stuart Hall, a face do termo identidade revela uma forma construída de fechamento. Sendo assim, “tem necessidade daquilo que lhe falta - mesmo que esse outro que lhe falta seja um outro silenciado e inarticulado”. (HALL, 2003, p. 109-110).
O problema para nós é saber como relacionar identidades e realidades de outras culturas, sociedades e histórias. Como lembra Said, para que nossas leituras não atribuam hierarquias, preferências pelo o que já é nosso, nem caiam nos discursos de uma igualdade e harmonia entre todos universalizantes, mas “fazer com que essas noções se relacionem com situações concretas, em que existe uma enorme distância entre o discurso de igualdade e justiça e a realidade bem menos edificante”. (SAID, 2005, p. 97). A realidade social para se tornar possível, constrói genealogias, inventa tradições e adestra corpos e mentes por seus elementos discursivos.
Diversos têm sido os termos para expressar as transformações dos laços sociais: modernidade, pós-modernidade, modernidade tardia, líquida, etc. expressões que visam compreender as mutações da vida social, tentativas para “mapear os territórios da existência”. (SAID, 2003, p.48). O fato é que uma realidade pautada no “indivíduo, identidade, organizações contratuais, atitude projetiva, dão lugar a uma outra realidade muito mais confusa, sensível, emocional, de contornos pouco definidos e de ambiente evanescente”. (MAFFESOLI, 1996, p. 348).
A idéia de identidade não deixa de ser uma ficção, sobretudo impregnada pela concepção de “identidade nacional” ou pela definição e sustentação da legitimidade da mesma. Assim, esta não deixa de ter surgido num contexto de “crise de pertencimento”, estando, sobretudo presente no nascimento do Estado Moderno, que define, classifica, segrega, seleciona tradições e modos de vida, coloniza imaginários, escreve a história, como forma do “Mesmo”, como esforço: “de transpor a brecha entre o ‘deve’ e o ‘é’ e erguer a realidade ao nível dos padrões estabelecidos pela idéia – recriar a realidade à semelhança da idéia”. (BAUMAN, 2005, p. 26). Uma idéia surgida para traçar uma história que se perpetue no imaginário, - numa época de intensos encontros de imaginários - contando, sobretudo com intelectuais para transmutar um ideário em fato, mitos em história.
O que temos diante das relações humanas são tentativas de criar mundos de similitudes para abrigar-lhes das incertezas e do desconhecido. Pensar diferenças é acompanhar rasuras de pretensos quadros fixos, é abrir-se para o caráter contingente e conflitual das formas culturais e sociais. Contestar enquadramentos e representações. Assim, pensar em identidade e diferença é antes de tudo pensar na maneira como se lida com o que é estranho e com o que é familiar, como os seres humanos criam identidades ou não e como se relacionam e dialogam (ou não) com a diferença.
Lidar com o estranho não é tentar fundi-lo, nem sintetizá-lo, mas tentar traduzi-lo ainda que seja com os limites das palavras que o lugar onde estamos nos dá. Reconhecer os limites do nosso olhar para tentar imaginar outros modos de vida, outros modos de se apropriar da linguagem para construir mundos, gramáticas da existência. O estranho não é algo tão separado do familiar e nem é o novo, mas talvez vestígios do que ficou recalcado, reprimido para dar consistência a uma ordem.
Entretanto, os elementos excluídos para a composição unilateral de uma identidade tende a se impor novamente, provocando o que Freud chamou de mal-estar da civilização ou retorno do recalcado. O que traria para o cenário da cultura e da sociedade tudo o que ficou de fora num projeto civilizatório, mas que nem foi totalmente esquecido e nem apagado do imaginário. Em suma: “A identidade não pode ser pensada nem trabalhada em si mesma; ela não pode se constituir nem sequer se imaginar sem aquela quebra ou falha original radical que não será reprimida” (SAID, 2004, p. 82).
Reconhecendo os limites asfixiantes da identidade, muitas vezes até consoladores pelas raízes que oferecem, só podemos lembrar do que Jacqueline Rose retoma ainda das palavras de Freud no trato com os seus pacientes, e que podem ser aplicados tanto ao nível individual quanto ao coletivo: “Aprendam a viver sem ficções consoladoras, pois é na morte destas fantasias anestesiantes e perigosas que se encontra sua única esperança”. (ROSE. In: SAID, 2004, p. 96).
Apropriando-nos disso, podemos pensar que a vida social seleciona valores, classifica e divide para que através de representações uma determinada realidade ganhe legitimidade, mas, para isso, algo fica de fora, esta mesma realidade precisa criar mecanismos para se proteger do que venha a contrariá-la ou negá-la. As representações não deixam de ser uma maneira de constituir garantias, ficcionalizar continuidades. As quimeras das similitudes não deixam de ser configurações para ocultar que “todo limite não é mais talvez que um corte arbitrário num conjunto indefinidamente móvel”. (FOUCAULT, 2002, p.68-69). Ou mesmo, maneiras pelas quais os seres humanos tentam compor seu universo, ainda que seja “carregando nas costas uma enorme Quimera”, como lembra o poeta Baudelaire (1996, p. 41).
A cena cultural contemporânea é a de um entrecruzamento de imagens, estilhaços de certezas e transfigurações de identidades. Reconfigurações de espaços, durabilidades questionadas, instantes vividos sem muitas ilusões consoladoras. Fios tênues da existência em novas formas da vida social, mais nômades do que sedentárias, uma busca pelo outro seja por identificação ou aversão.
Diferenças são efeitos da imbricação de várias categorias de identidade social como raça, classe, etnicidade, gênero, nação, lógicas de parentesco, entre outras e que não podem estar agrupadas sob a égide de um único domínio. Como a identidade jamais pode ser pensada a partir de um único ponto, nem como um lugar de garantias, mas como sugere Kofes: “considerada mais como um objeto do que como um conceito” (KOFES, 2004, p. 289), ou mesmo como algo que se revela sempre como invenção e não descoberta, como entende Zygmunt Bauman. Não defini-la a priori, mas antes ver se a encontramos.
Em vez de buscar identidade, procurar antes enunciações de diferença. Mas, não pensar isso como dado, antes como esforços imaginativos de compreensão de relações. Ambas ocupam posições múltiplas e variáveis na vida social, o que desestabiliza pensar essas noções como coerentes, unitárias e fixas, mas antes num jogo intricado onde há movimento e circularidade. Reconhecer “lacunas e assimetrias” , conhecer uns aos outros e viver com esse conhecimento é o que induz “imaginar a diferença (o que não significa, é claro, inventá-la, mas torná-la evidente)”. (GEERTZ, 1996, p. 82).
Identidades e diferenças são lógicas produzidas pela linguagem e encarnadas nos corpos na construção e desconstrução de representações sociais. Sendo assim são encarnadas de muitas maneiras e com diversos fins. Enfim, podemos seguir lendo a vida, tentando ver “a academia sempre como um lugar para viajar, sem dela nada possuir, mas sentindo-nos sempre em casa em qualquer lugar”. (SAID, 2003, p.207). Sondando classificações e mesmo apelos plurais em nome de identidade ou mesmo de diferença, poderemos talvez perceber que nem todo pluralismo quer dizer que falemos em pluralidade, ou seja, nem sempre estaremos dando conta de perspectivas relacionais, antes de enquadramentos e exclusões. Poderíamos pensar que nem sempre precisamos perguntar “quem precisa de identidade?”, (HALL, 2000), ou mesmo quando não se precisa dela? E também, quando se precisa da diferença?
O prisma da diferença pode ser utilizado como justificativa ideológica para práticas institucionais discriminatórias, como também para provar ou ratificar divisões entre sexos, entre posições sociais ou condições valorativas. Por exemplo, cotas para negros, índios, pobres, mulheres, até que ponto garantimos direitos ou nutrimos separações e legitimamos desigualdades? Em nome de inclusão de diferenças não estaríamos ignorando mestiçagens, divisões internas dentre essas próprias categorias? Said ainda esclarece que não há como pensar em homegeneidades, pois além desse Outro, existem também muitos outros internos na vida social, o que a tornam híbrida. “Nenhuma identidade é estanque: cada uma influencia as demais.” (SAID, 2003, p.201) e sejam quais forem as posições, considerando os conflitos que constituem a vida social, não há posições inocentes, nem lugar para subjugados e algozes, mas ações que se projetam, entre dominações e resistências, relações de poder e anomias.
Apropriando-nos da análise de Cláudia Costa sobre uma perspectiva relacional, talvez perceber essas questões sobre identidade e diferença em seus contextos de interação social, com suas marcas de escolhas individuais e mesmos em suas pressões situacionais, no intuito de perceber como se constroem e se constituem, para apreendê-las não como “sistemas monolíticos, mas como configurações complexas, múltiplas e heterogêneas”. (COSTA, 1994, p. 161).
A maneira como lemos pode levar-nos a perceber que o que escrevemos traduz menos significados precisos do que maneiras de “agrimensar, cartografar, mesmo que sejam regiões ainda por vir.” (DELEUZE; GUATARRI, 1995, p. 13). Um mapeamento de frases lidas, palavras escutadas, experiências apreendidas, que mesmo árduas, não deixam de ser uma felicidade clandestina.



por CRISTINA MARIA DA SILVA: Socióloga - UECE. Mestre em Ciências Sociais - UFRN. Doutoranda em Ciências Sociais - UNICAMP- CNPq. Área de concentração: Itinerários intelectuais e etnografia do conhecimento.

Revista Espaço Acadêmico/Nº 67 - Dezembro /2006 Mensal - Ano - VI

*CONTO DE FADAS PARA AS MULHERES DO SÉCULO XXI*

Era uma vez...
numa terra muito distante...uma princesa linda, independente e cheia de auto-estima.
Ela se deparou com uma rã enquanto contemplava a natureza e pensava em como o maravilhoso lago do seu castelo era relaxante e ecológico...
Então, a rã pulou para o seu colo e disse: linda princesa, eu já fui um príncipe muito bonito.
Uma bruxa má lançou-me um encanto e transformei-me nesta rã asquerosa.
Um beijo teu, no entanto, há de me transformar de novo num belo príncipe e poderemos casar e constituir lar feliz no teu lindo castelo.
A tua mãe poderia vir morar conosco e tu poderias preparar o meu jantar, lavar as minhas roupas, criar os nossos filhos e seríamos felizes para sempre...
Naquela noite, enquanto saboreava pernas de rã sautée, acompanhadas de um cremoso molho acebolado e de um finíssimo vinho branco, a princesa sorria, pensando consigo mesma:

- Eu, hein?... nem morta!



Luís Fernando Veríssimo

Literatura faz bem para a saúde

Não é de admirar que a leitura tenha se tornado um recurso terapêutico ao longo dos tempos

Por Moacyr Scliar*

Revista Vida Simples - 02/2008



"É difícil / extrair novidades de poemas / no entanto, pessoas morrem miseravelmente / pela falta daquilo que ali se encontra." O poeta e dramaturgo modernista americano William Carlos Williams (1883-1963) sabia do que estava falando quando escreveu esses versos: além de escritor multitalentoso, tinha formação em medicina e efetivamente trabalhava cuidando da saúde dos outros. A partir de sua afirmativa, a pergunta se impõe: o que existe, nos poemas e na literatura em geral, que pode manter as pessoas vivas e, quem sabe, até ajudar na cura de algumas doenças?
Em primeiro lugar, podemos destacar as próprias palavras. Que são, como costumavam dizer os antigos gregos, um verdadeiro remédio para as mentes sofredoras. Não se tratava só de uma metáfora engenhosa e sedutora: no século 1 d.C. o médico romano Soranus prescrevia poemas e peças teatrais para seus pacientes. O teatro, aliás, era considerado uma válvula de escape para aquelas emoções reprimidas que todos têm, através da catarse (alívio) que proporciona.
A palavra tem um efeito terapêutico. Verbalizar ajuda os pacientes, e esse é o fundamento da psicoterapia - ou talk therapy, como dizem os americanos. E a inversa é verdadeira: ao ouvir histórias, as crianças sentem-se emocionalmente amparadas. E não apenas elas, claro. Todos nós gostamos de escutar causos e de nos identificarmos com alguns deles. Dizia Bruno Bettelheim (1903-1990), psicólogo americano de origem austríaca, sobrevivente dos campos de concentração nazistas: "Os contos de fadas, à diferença de qualquer outra forma de literatura, dirigem a criança para a descoberta de sua identidade. Os contos de fadas mostram que uma vida compensadora e boa está ao alcance da pessoa, apesar das adversidades".
Não é de admirar, portanto, que a leitura tenha se transformado em recurso terapêutico ao longo dos tempos. No primeiro hospital para doentes mentais dos Estados Unidos, o Pennsylvania Hospital (fundado em 1751 por Benjamin Franklin), na Filadélfia, os pacientes não apenas liam como escreviam e publicavam seus textos num jornal muito sugestivamente chamado The Illuminator ("O Iluminador", em inglês). Nos anos 60 e 70 do século 20, o termo "biblioterapia" passou a designar essas atividades. Logo surgiu a "poematerapia", desenvolvida em instituições como o Instituto de Terapia Poética de Los Angeles, no estado americano da Califórnia. Aliás, nos Estados Unidos existe até uma Associação Nacional pela Terapia Poética.
Aqui no Brasil, já temos várias experiências na área. No livro O Terapeuta e o Lobo - A Utilização do Conto na Psicoterapia da Criança, o psiquiatra infantil, poeta e escritor Celso Gutfreind destaca a enorme importância terapêutica do conto, como forma de reforço à identidade infantil e como antídoto contra o medo que aflige tantas crianças. Também é de destacar o Projeto Biblioteca Viva em Hospitais, realizado no Rio de Janeiro e mantido pelo Ministério da Saúde, pela Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança e por um grande banco. A leitura, realizada por voluntários, ajuda a criança a vencer a insegurança do ambiente estranho e da penosa experiência da doença, terrível para todos, mas ainda mais amedrontadora para os pequenos.
Finalmente, é preciso dizer que a literatura pode colaborar para a própria formação médica. Muitas escolas de medicina pelo mundo, inclusive no Brasil, estão incluindo no currículo a disciplina Medicina e Literatura. Através de textos como A Morte de Ivan Illich, do escritor russo Léon Tolstoi (em que o personagem sofre de câncer), A Montanha Mágica, do alemão Thomas Mann (que fala sobre a tuberculose) e O Alienista, do brasileiro Machado de Assis (uma sátira às instituições mentais do século 19), os alunos tomam conhecimento da dimensão humana da doença. E assim, mesmo que muitas vezes indiretamente, a literatura passa a ajudar pacientes de todas as idades.

 
*Moacyr Scliar é médico sanitarista e um dos principais escritores brasileiros, autor de, entre outros, A Paixão Transformada, um ensaio sobre as relações entre medicina e literatura.